Ciclos de dor
Descobri que minha filha pretende se mudar, então decidi empacotar alguns dos brinquedos favoritos dela quando criança, como recordação da alegre infância que desejo que ela tenha tido. Não que eu não fosse uma boa mãe, mas nossa relação era difícil. Eu tentava ao máximo, mas ela nunca foi a mesma depois do acidente no circo.
Ao procurar no empoeirado sótão, no qual eu não mexo faz décadas, encontrei, soterrado por revistas antigas, meu baú de roupas da minha época como domadora de leões circense. Tudo está no lugar. Me lembra dos bons tempos, quando minha preocupação era apenas o sabor de pipoca que eu queria. Acho que se não fosse pelo acidente, cujas consequências são pagas até os dias atuais, eu ainda estaria lá: trabalhando ao lado de quem eu amava e fazendo o que eu amava todos os dias.
Penso todas as noites se fui eu que deixei o portão dos leões aberto. Será eu a culpada por toda aquelas mortes? Ainda torturo-me com as possíveis respostas. Não deveria ter aberto esse baú, apenas trouxe pensamentos ruins à mim. Antes de fechá-lo, notei um papel sobre minhas camisas. Não o tinha visto antes. Parece uma carta. Com cuidado abro-a e espanto-me ao perceber que o escritor dela é, conforme a assinatura, meu marido:
"Querida, não posso mais mentir para vocês, eu não quero mais essa vida. Tudo que fiz ainda me atormenta. Não posso viver assim. Leve nossa criança à um local seguro. Hoje encerrarei o ciclo que começou anos atrás. Amo vocês mais do que tudo no mundo, por favor, cuidem-se. - seu amado trapezista".
A data é do dia do acidente.
Meu rosto derrepente começa a ficar úmido e logo as lágrimas começam a cair. O choro amargo se espalha pelas minha bochechas e meu coração aperta dolorosamente.
Minha visão escurece.
O silêncio é absoluto.